A marca no flanco
O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que
lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
É uma ideia assustadora: vivemos segundo o
nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou
congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo.
E o que configura essa perspectiva nossa?
Ela se inaugura na infância, com suas
carências nem sempre explicáveis. Mesmo se fomos amados, sofremos de uma
insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades e
imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras e ao
mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nos espera. Toda
essa trama de encontro e separação, terror e êxtase encadeados, matéria da
nossa existência, começa antes de nascermos.
Mas não somos apenas levados à revelia numa
torrente. Somos participantes.
Nisso reside nossa possível tragédia: o
desperdício de uma vida com seus talentos truncados se não conseguirmos ver ou
não tivermos audácia para mudar para melhor – em qualquer momento, e em
qualquer idade.
A elaboração desse nós iniciado na infância
ergue as paredes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que é
coroamento embora em geral seja visto como deterioração.
Nesse trabalho nossa mão se junta às dos
muitos que nos formam. Libertando-nos deles com o amadurecimento, vamos
montando uma figura: quem queremos ser, quem pensamos que devemos ser – quem
achamos que merecemos ser.
Nessa casa, a casa da alma e a casa do corpo,
não seremos apenas fantoches que vagam, mas guerreiros que pensam e decidem.
Constituir um ser humano, um nós, é trabalho
que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos
malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão
também janelas para a paisagem e varandas para sol. O que se produzir – casa
habitável ou ruína estéril – será a soma do que pensaram e pensamos de nós, do
quanto nos amaram e nos amamos, do que fizeram pensar que valemos e do que
fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, sinete, essa marca.
Porém isso ainda seria simples demais: nessa
argamassa misturam-se boa-vontade e equívocos, sedução e celebração, palavras
amorosas e convites recusados. Participamos de uma singular dança de máscaras
sobrepostas, atrás das quais somos o objeto de nossa própria inquietação. Nem
inteiramente vítimas nem totalmente senhores, cada momento de cada dia um
desafio.
Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta.
Nos faz humanos.
No prazo de minha existência completarei o
projeto que me foi proposto, aos poucos tomando conta dessa tela e do pincel.
Nos primeiros anos quase tudo foi obra do
ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a
olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação.
Logo não terei mais a desculpa dos outros: pai
e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as
naturais fraquezas da condição humana que só quando adultos reconhecemos. Por
fim havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu.
Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer.
E eu... e eu?
Marcados pelo que nos transmitem os outros,
seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é
tecida de dois fios entrelaçados: um nasce dos que nos geraram e criaram; o
outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança.
Luft, Lya. Perdas
e ganhos. Rio de Janeiro: Record, 2004
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